No tabuleiro da vida somos peças dispostas. Existem momentos onde cada pedra é movimentada ao seu momento, e por mais confuso seja o rumo, só entenderemos a jogada ao final, o ano de 2003 marcou a vitória a superação, achava eu ter atingido todas as metas...o fato é: após o diagnóstico do meu pai de Hanseníase Puramente Neural, parece ter acionado o cronometro, e dali pra frente, seguiram-se algumas intervenções cirúrgicas para liberação de seu nervo espessado, melhoras em seu estado e ao mesmo tempo decaídas , mas, sem minha aprovação no vestibular não teria acompanhado seu tratamento, e todas as minhas férias foram dedicadas ao cuidado de meu pai.
Aos 67 anos de idade sonhava ainda em andar, homem simples, conhecido no "igarapé dos Currais", filho de Mário Lobo, admirado pela retidão, palavra e trabalho. Lembro quando saímos de Manaus com destino a Parintins logo depois do seu diagnóstico e do procedimento cirúrgico, queria retornar ao seu habitat, navegamos juntos em direção ao lugar onde nasceu, fazenda Aliança, lá tomou banho de rio e expôs sua melhora momentânea, ele era duro na queda...
Já aprovado e cursando o final do terceiro ano início do 4 ano de faculdade, precisamente no dia 21 de janeiro de 2006, me encontrava em Parintins junto com meu irmão Amilcar, por volta das 20:00h, recebo um telefonema dando conta que meu pai estava na UTI, supostamente teria sofrido um AVE. E ali, naquele instante iniciaria sua via crucis. Não tive coragem de vê-lo e durante 14 dias fugia dessa visão, apesar de absurdo, passou em minha mente que talvez ele estivesse nos esperando para partir, e então resolvi ir ao seu encontro.
Na UTI, estava ele, como um Andróide em reparo, cheio de tubos e proteções, visão que mesmo como médico fugiu a meu controle, tentei não chorar, no entanto, olhando em seu corpo cansado me rendi a suas supostas dores, mesmo compreendendo seu estado comatoso restava-lhe a cura das dores da alma. Naquele momento pensei imediatamente se havia deixado de lhe dizer algo, e em minha lembrança vaga nada veio em mente. Beijei seu rosto gelado e pálido, e até hoje carrego aquela lembrança.
Meu irmão Gilson foi incansável, todos os dias o visitava na UTI, e para mim, restava o amargor de passar em frente todos os dias do hospital e lembrar de dar bom dia ou boa noite ao meu bom e velho pai. Os horários da visita quase sempre não batiam com os horários da faculdade, mas, sábado e domingo eram sagrados a visita...geralmente minha mãe e eu, ao insistir, Gilson entrava também. Imaginem um procedimento? Então meu pai fez, foi traquestomizado, recebeu drenos bilaterais de tórax após desenvolver uma pneumonia por S. aureus, debridamentos de escaras enfim, passou por uma batalha interminável.
Durante nossas visitas, tentávamos nos agarrar em pequenos gestos que julgávamos ser de lucidez ou orientação, esboçávamos desenhos de sorrisos em seus lábios, fotos e até vídeos em sua frente na tentativa de fazer lembra-lo ou dar sentido em sua luta. Será que nos notou? Ele estava lúcido? Escultou nossas noticias e orações? Não sabemos...
Durante longos nove meses no CTI, vimos outras familias perderem seus parentes, e seu Manoelino estava alí, jovens morreram, conhecemos outras familias, ficamos agradecidos pela equipe que cuidava dele, lembro-me de um nome Socorro, ela o cuidava como seu Pai. Festejamos no dia 06 de junho de 2006 seus 70 anos, levamos bolo, salgado e refrigerante a toda equipe do CTI, tivemos a chance de nesse dia todos, verem e parabenizar um Pai que bravamente fugia da morte.
Um dia, o encontramos sentado na poltrona, e fomos informados que ele receberia alta para o quarto, não nos contivemos, e ficamos enlouquecidos de felicidade com a oportunidade real de todos em comum sairem daquela pelegrinação e claro, ter melhor acesso a ele. Ao chegar no quarto, percebemos que o mesmo não tinha condições e pessoal treinado para cuidar dele, e novamente ele é reinternado na UTI.
No dia 03 de novembro de 2006, fomos informados que seus rins estavam em falência, somente a hemodiálise melhoraria seu quadro, sendo pra mim a gota dágua. Avisamos a toda equipe que em caso de parada cardiaca o deixa-se partir, nosso egoísmo em tê-lo entre nós deveria chegar ao fim, negamos a hemodiálise e nos preparamos para sua partida.
Ás 07h da manhã, meu irmão Gilson foi a missa na Igreja de São Sebastião, desejou profundamente que meu pai recebesse a comunhão por ele, e no seu interior, percebeu que assim o fez...Foi até a UTI e ao longe via a pressão arterial diminuir a cada mensuração, seus batimentos diminuíam vagarosamente, e as 8h da manhã do dia 05 de novembro de 2006, após a colocação do escapulário em seu pescoço, morre Manoelino de Oliveira Bentes, o homem cujo nome era conhecido em sua terra...
Inúmeros amigos me sustentaram nessa perda. Egreen, só posso dizer, você foi foda demais, teve presente a todo instante, um dia pegaremos um porre e conversaremos. Ezequiel Cabral, mosntro sagrado de Porto Velho, tão nervoso que ao não saber me consolar, comprou-me duas cocas e me entregou. Alison, Adam, Daniel, Carlo Valdivia, Bergson ainda falarei em detalhes desses meus irmãos que fizeram hoje eu concluir essa faculdade, claro, junto com minha mãe e meus irmãos.
Ao perder meu pai, além de emocionado por sua ausência eterna, lidava com a emoção do carinho e apreço que o devotavam, amigos de longe vieram prestar homenagens, coroas de flores de pessoas desconhecidas para nós mas amigas dele, rodeavam seu corpo inerte.
Acabava alí sua vida, e a nós, restava retornar para casa sem sua presença, e iniciar do ponto de parada as nossas vidas...